Arte na periferia: resistência, identidade e transformação
Quando falamos em cultura, é comum que os holofotes estejam voltados aos grandes centros e instituições consolidadas. Mas quem caminha pelas ruas das periferias sabe que há um universo pulsante de expressão artística além do que as manchetes mostram. Para entender o papel da arte nesses territórios, conversamos com artistas locais que transformam seu entorno em ateliês, palcos e telas vivas.
O poder da arte que nasce no concreto
A periferia não é apenas um lugar geográfico, é um lugar simbólico. É onde muitas vezes a ausência do Estado faz com que a criação artística surja como forma de denúncia, de afeto e de sobrevivência. E é nesse cenário que artistas como Luciana « Lulu » da Cruz, grafiteira e arte-educadora da Vila São José, encontram espaço e voz.
“Quando comecei a grafitar, o pessoal achava que era coisa de vagabundo. Hoje, minha arte está estampada em três escolas públicas, e cada desenho meu é um recado para aquela criança que passa de manhã e pensa ‘essa parede fala de mim’”, contou Lulu enquanto nos mostrava imagens de murais pintados junto com alunos do bairro.
Ao lado dela, o rapper e produtor cultural Tiago Moreno, do bairro Itiberê, complementa: “Na quebrada a arte é trincheira. É o jeito que a gente tem de contar a nossa versão da história que muitas vezes é silenciada.”
Muito além do entretenimento
A arte nas periferias não se resume ao lazer; ela é ferramenta pedagógica, instrumento político e respiro emocional. Em sua fala, a dançarina contemporânea e coreógrafa Ana Clévia faz um alerta: “Não podemos tratar a arte como algo supérfluo. Quando tiram a arte da escola, tiram também a possibilidade do aluno se reconhecer, se sentir parte do mundo.”
Ana coordena oficinas de dança no Centro Cultural do Morro da Formiga, onde atende semanalmente mais de 60 crianças e adolescentes. Os espetáculos que monta dão forma às narrativas locais, muitas vezes ignoradas pelas mídias convencionais. “As mães choram ao verem seus filhos no palco, porque sabem que poderia ser qualquer outro cenário – e não um palco – que essas crianças estariam ocupando.”
Desafios de quem cria na margem
Apesar da riqueza cultural evidente, a produção artística nas periferias enfrenta barreiras constantes. Falta de investimento, de estrutura e até mesmo de reconhecimento ainda são obstáculos diários. “A gente batalha não só para produzir, mas para fazer com que nossas produções sejam vistas como legítimas”, afirma Tiago.
Esses desafios, no entanto, não desanimam. Ao contrário, fortalecem uma organização coletiva cada vez mais atuante. Muitos artistas se associam a coletivos, como é o caso do Coletivo Raiz Urbana, que promove sarais, shows e feiras de arte independente em diversos bairros da região. Lulu resume: “Sozinha, a arte é um grito. Juntas, ela vira movimento.”
Histórias que ecoam nos muros e nos palcos
Durante nossa caminhada por bairros como Cohapar II e Jardim Esperança, foi possível sentir o quanto a arte está entranhada no cotidiano. É no skate que virou intervenção cultural, é no samba do bar de esquina, é no grafite que protege a praça do abandono. Como dizia Ana Clévia, « a maioria das pessoas só precisa de um empurrãozinho pra entender que também são artistas”.
Foi o caso de Júlio « Braw », um ex-detento que encontrou no teatro comunitário uma nova forma de viver. Hoje atua no grupo Cena Periférica, que realiza peças baseadas em histórias de moradores das comunidades. “Eu achava que minha história era tipo um lixo… até perceber que ela podia virar arte e tocar as pessoas. Agora me chamam de ator. Mas pra mim, acima de tudo, sou voz da minha quebrada.”
Quando o Estado silencia, a arte desenha caminhos
O papel das políticas públicas é crucial nessa equação. Sem editais acessíveis, espaços culturais de base e apoio técnico, muitos talentos continuam invisíveis. “Quantos artistas incríveis são obrigados a desistir porque não têm CNPJ, não conseguem elaborar um projeto?” questiona Ana. “A gente precisa de menos burocracia e mais escuta.”
Enquanto isso, a autogestão se impõe como saída viável. Projetos como a « Biblioteca de Rua » da Ponte Preta e o « Palco Livre » do bairro São Domingos são mantidos por moradores que se revezam em turnos, eventos e arrecadações. É o fazer coletivo, o amor pela cultura falando mais alto que as dificuldades.
Por que falar de arte na periferia importa?
Porque ela é o termômetro social, o reflexo das questões mais urgentes e, muitas vezes, o único canal por onde se escapa da invisibilidade. Falar de arte na periferia é quebrar estigmas, é entender que cultura não se resume a calendários oficiais, mas pulsa onde há vida e criatividade.
Como bem disse Tiago: “A arte na quebrada é como uma semente no asfalto. Muitos duvidam que vá brotar, mas quando floresce, ninguém consegue ignorar.”
- Ela transforma muros em narrativas visuais
- Promove afeto, pertencimento e autoestima
- Gera conhecimento e oportunidades
- Conecta gerações em torno de histórias comuns
- Resiste a uma sociedade que frequentemente marginaliza corpos periféricos
O que podemos aprender com esses artistas?
Que criatividade não tem CEP, e que a periferia é fértil em expressões artísticas autênticas, carregadas de sentido, emoção e potência transformadora. A arte desses territórios não espera por salvadores nem grandes centros. Ela brota, se espalha e floresce no coletivo.
Ao finalizar nossa série de conversas, fica a sensação de que ouvir esses artistas é mais do que conhecer projetos culturais: é reconhecer o quanto a cultura, quando acessível e enraizada, pode ser um fio condutor de cidadania, empoderamento e futuro.
Se ainda restava dúvida sobre a importância da arte na periferia, basta acompanhar um ensaio, um sarau ou ver o brilho nos olhos de quem se reconhece em uma canção ou desenho do bairro. Não é só arte – é identidade, é resistência, é caminho.
Como diria Lulu, de frente para um de seus murais coloridos: “Aqui é periferia, sim. Mas também é galeria, é escola de vida e é palco do que a gente tem de melhor para mostrar.”