Superação no sangue: quando o esporte local transcende limites
Em tempos nos quais os noticiários giram em torno de crises políticas e insegurança urbana, histórias que mostram o poder da superação ganham ainda mais relevância. No esporte local, onde o glamour é substituído por treinos em quadras improvisadas ou campos esburacados, a jornada de atletas da região é marcada por coragem, resiliência e, sobretudo, paixão. Neste artigo, exploramos trajetórias inspiradoras de esportistas que, mesmo longe dos holofotes, levantam a bandeira da dedicação e tornam-se exemplos vivos de que obstáculos existem para serem superados.
Camila Andrade: da periferia ao pódio do jiu-jitsu
Quando Camila tinha 9 anos, o que ela mais via pela janela de sua casa, no bairro Jardim Guarujá, eram garotos se metendo em encrenca. Sua mãe, com receio de que ela seguisse o mesmo caminho, decidiu inscrevê-la num projeto social que oferecia aulas de jiu-jitsu. A menina franzina, que mal conseguia amarrar a faixa direita, se transformou com os anos.
Hoje, aos 21, Camila coleciona títulos estaduais e é presença constante em campeonatos nacionais. Tudo isso conciliando treinos diários com o trabalho de caixa em um mercado local. “Já competi sem saber se teria dinheiro para voltar pra casa”, conta, rindo. Camila mostra, com suor e disciplina, que o esporte pode ser rota de escape – e, quem sabe, de ascensão.
Lucas “Canhão” Mendes: velocidade como arma contra o preconceito
No distrito de Vila Alice, Lucas Mendes, de 17 anos, é conhecido como “Canhão”. O apelido veio após ele vencer todos os colegas em uma corrida de rua organizada por um projeto escolar. Negro, filho de diarista e motorista, Lucas enfrentou o racismo desde cedo – na escola, no bairro e até em competições.
“Teve treinador que me deixou no banco porque disse que meu jeito correndo era estranho, que parecia desengonçado”, lembra. Hoje, com alguns prêmios regionais na estante e uma possibilidade real de bolsa esportiva na universidade estadual, Lucas também é mentor em um grupo de corrida para crianças da região. “Correr me ensinou a ignorar as vozes que tentam me parar, dentro ou fora das pistas.”
Ana Beatriz e os 25 degraus até o topo do surfe feminino
Nascida e criada em Itanhaém, Ana Beatriz Ramos teve seu primeiro contato com o mar aos 6 anos. Mais tarde, foi num bodyboard improvisado que ela pegou suas primeiras ondas. Hoje, com 23 anos, ela bate de frente com atletas patrocinadas de todo o Brasil no ranking nacional de surfe feminino.
Mas essa história de arquétipo havaiano passa longe da realidade de Ana. “Eu chegava na praia de ônibus. Carregava a prancha velha por 25 degraus desde o morro onde morava. E ainda voltava correndo para ajudar minha avó”, relata. Ana não possui patrocinadores fixos. Vende rifas em redes sociais e conta com o apoio de moradores e comerciantes locais para competir.
Ela acredita que, além da performance, sua presença inspira outras meninas do litoral: “Essas garotas vêm até mim e dizem que querem ser como eu. Isso me carrega mais que qualquer medalha”.
Esporte como ferramenta de reconstrução
Além dos jovens que enfrentam batalhas sociais ou econômicas, há também aqueles que recorrem ao esporte como forma de reconstrução emocional. É o caso de Roberto “Beto” Azevedo, ex-dependente químico que encontrou na musculação uma nova vida.
Beto, 34 anos, chegou a morar na rua por mais de dois anos em Praia Grande. Após passar por uma clínica de reabilitação, conheceu um projeto municipal de bem-estar que ofertava atividades físicas gratuitas. “Comecei colocando os pesos achando que era pra passar o tempo. Hoje, treino três vezes por semana, sou educador social voluntário e estudo para ser personal trainer”, diz com um sorriso de orgulho.
Histórias como a de Beto provam, com simplicidade e força, que o esporte local não é apenas sobre competição – é sobre transformação.
Projetos de base: onde nascem os sonhos
Por trás de muitos desses atletas, há iniciativas que, silenciosamente, movem estruturas. Projetos sociais esportivos – quase sempre tocados por voluntários e com recursos limitados – são o verdadeiro coração das histórias de superação que vemos florescer na região.
Entre os mais notáveis:
- Projeto Litoral Ativo (Mongaguá): oferece aulas gratuitas de vôlei, futsal e karatê para crianças e adolescentes, promovendo integração e disciplina;
- Instituto Ondas do Bem (Itanhaém): foca em aulas de surfe e educação ambiental para crianças em situação de vulnerabilidade;
- Corrida Cidadã (Praia Grande): reúne atletas amadores e promove treinos gratuitos em espaços públicos, incentivando o bem-estar coletivo;
- Escolinha Boca do Gol (São Vicente): ensinando mais que futebol, forma caráter e oferece apoio psicológico para seus alunos.
Estas iniciativas não apenas revelam talentos. Elas resgatam seres humanos da invisibilidade, oferecendo horizontes onde antes havia muros.
O fator invisível: a luta constante por apoio
Apesar das histórias emocionantes, o esporte de base na região ainda vive à margem do apoio institucional. A maioria desses projetos depende de doações, rifas, vaquinhas virtuais e muita criatividade. E os atletas? Contam com seus próprios bolsos – e de suas famílias – para bancar viagens, equipamentos e inscrições.
É comum ouvir relatos como: “Tive que escolher entre pagar a conta de luz ou competir”. Diante disso, a pergunta que ecoa é: o que mais falta comprovar para que investimentos sérios na base virem prioridade?
O rendimento começa na semente. E aqui no litoral, essa semente cresce no asfalto, na areia, nas vielas.
Quando a comunidade entra em campo
Se falta incentivo estruturado, sobra solidariedade. Comerciantes de bairro, vizinhos, professores e antigos atletas formam redes de apoio espontâneas que fazem milagres. Há padarias que doam lanches para equipes infantis em dias de treino, lojas que emprestam uniformes e até moradores que transformam seus quintais em mini-quadras.
Essa participação mostra que a superação não é individual. É coletiva. Cada vitória que vemos na pista, no tatame ou na areia é também conquista de quem acredita, mesmo sem saber o nome do atleta, no poder de transformação que o esporte oferece.
O que aprendemos com quem não desiste
Talvez a principal lição dessas histórias não esteja nos troféus, e sim no que elas nos ensinam sobre resistência e propósito. Em cada bairro, há jovens treinando com o mínimo, sonhando o máximo e ensinando aos seus que a disciplina vale mais que qualquer resultado no placar.
A pergunta que fica: será que estamos fazendo o suficiente para garantir que esses talentos não sejam desperdiçados por falta de apoio? Que a próxima geração possa competir de igual para igual – não pelos aplausos, mas pela possibilidade de construir um futuro digno?
A resposta ainda está em disputa. Mas, como mostram Camila, Lucas, Ana e Beto, não faltam atletas dispostos a dar o primeiro passo.
